8 de abril de 2010


Refugio


Ela acordou de um sono profundo sem sonho. Fechou novamente os olhos. Esperou.
Virou de bruços ainda com os olhos fechados. Tateou na escuridão a procura de algo. Encontrou. Abriu lentamente os olhos e olhou para o rádio relógio em suas mãos. 05h00min da manhã diziam os números vermelhos, em néon.


Continuou deitada. Mas desta vez, ficou com os olhos abertos, parados, fitando o teto. O quarto estava um breu. Silencioso. Não se sabe quanto tempo ficou ali parada no mesmo lugar: segundos, minutos ou horas.


A cama rangeu, pés descalços tocaram o chão. Ela ficou sentada e olhou para o lado, focalizou a fresta da porta, e viu o contorno do sofá. Ficou mais um segundo ali, criando coragem para sair do seu refugio.


Levantou-se e arrastou-se até a porta. Seus dedos ossudos e brancos tocaram a maçaneta da porta de madeira. Ficaram ali paradas. A porta e ela. Ela olhou para a cama desarrumada mais uma vez. Precisava criar coragem para sair. Ela sabia.
Abriu-se a porta. Passos vacilante pelo corredor. O barulho do vento do lado de fora, quebrava a quietude do lugar. Ela não acendeu a luz. Fazia um tempo que não acendia nada.


O cheiro de mofo penetrou em suas narinas, mas ela nem ligou. Dirigiu-se para a cozinha. Passou pela pia, abarrotada de louças sujas. Abriu a geladeira. Espiou. Vazia. Pegou a garrafa d’água e bebeu direto no gargalo. A água gelada escorreu pelos seus lábios, deixando um rastro no corpo nu e magro. Seus olhos, castanhos, tristes e indiferentes passearam pela cozinha bagunçada. Não sentiu nada, pois não tinha mais nada para sentir.
Seguiu novamente para a sala. Sentou no sofá. Olhou para a televisão desligada. E esperou. Nada aconteceu. Assim como na sua vida, nada aconteceu.


No aparador, fotos de outrora, quando a alegria reinava dentro do seu ser. Sorriso livre, olhos castanhos alegres e a felicidade estampada nas suas feições. Fotos de amigos e dele. Não tivera coragem de tirar a foto de lá. Apesar de que não tinha mais coragem para nada.
Deixou-se ficar. Mas não se permitiu olhar de novo em direção as fotos. Não queria lembrar. Não havia mais lágrimas para chorar. Estava oca.


A secretaria eletrônica deixara de piscar já faz algum tempo. Ninguém mais ligava. Desistiram. Assim como ela, desistiu.


Precisava voltar para o seu refúgio, o seu quarto. Mas não conseguia se mover. Sentiu tremores passeando pelo seu corpo. Ficou encolhida. Um casulo humano solitário.
Raios de sol infiltravam pelas frestas das cortinas pesadas da sala, preenchendo o ambiente. Amanhancera. Ela não queria ficar ali. Continuava a tremer. O sol fazia as lembranças voltarem. Ela não queria pensar.


Fez esforço para levantar-se e dirigiu-se para as cortinas. Precisava fechá-las. Teve o cuidado de não olhar para a janela. Mas a luz conseguiu alcançá-la e cegá-la, momentaneamente. Ela não queria olhar através da janela. Não queria olhar lá fora. Não podia.


Mas algo a forçava a olhar. Ouviu uma risada. Aquela risada gostosa, que a gente daria tudo para ouvir novamente, mas ela não queria ouvir. A força invisível foi empurrando-a até ela encostar a face no vidro. Cerrou os olhos com força. Não podia...


Então, ela ouviu a risada, e a voz, chamando:
“Venha, saia do casulo, venha ver o lindo dia que está fazendo”- a voz risonha falava.
"Não tenha medo! Venha comigo.”
Ela reconheceu a voz. O Suor brotava da sua testa. Lágrimas começavam a cair. Não podia olhar. Mas a voz persistia:
“Você ainda está viva. Venha, eu preciso te mostrar algo. Não tenha medo de mim.”


Ela semicerrou os olhos. Deixou a claridade entrar, aos poucos, em suas retinas. Os olhos foram abrindo, abrindo. Então ela viu a moça do outro lado da rua, acenando. Sorrindo com aquele sorriso livre, os olhos alegres e cheios de vida. Era a moça da foto do seu aparador. Ela. Um fantasma.


“A vida continua. Não desista. Você consegue. Saia da escuridão e venha para a luz.”
Ela fixou o olhar na figura jovial do lado de fora. Como ela era bonita. Como ela era segura.


“Venha ouvir os cantos dos pássaros. Venha sentir o vento bagunçar os seus cabelos. Venha se divertir. Deixe a felicidade entrar. Você não esta vendo? você não é feliz. Não adianta esconder-se. A vida vai passar. Você não entende? Venha comigo, eu prometo que não vou te deixar. Confie em mim. Eu só quero te mostrar uma coisa. Eu sei, você vai gostar. Mas por favor,permita-se!Por favor!”


Ela sentiu o seu coração bater mais rápido. Colocou a mão no peito e o sentiu. Pensava que não tinha mais nada para bater ali. Baixou o olhar. Não queria mais fitar o espectro da moça que ainda insistia lá fora.


“Há tantas coisas para ti mostrar, tantas...”
“Venha!” – e sorriu. “Estou te esperando”.


Ela sentiu a ansiedade apoderar do seu corpo. Ela sentiu a esperança brotar. Fez um esforço para não sucumbir à voz, e as sensações novas sentidas.


Mas, não adiantava se esquivar, a voz lançou a semente da esperança para dentro do se ser, e ela germinava lá dentro.


A vontade de gritar era tão grande, ela percebia. A muralha de proteção erguida faz algum tempo foi ruindo. Ela tentou voltar para o casulo, mas não conseguia.


“Abra as cortinas, deixa o sol entrar. Deixa a luz fazer parte da sua vida.”
Ela abriu as cortinas, os raios penetraram naquele lugar escondido do mundo.
“Vá colocar uma roupa e venha”


E ela foi. Entrou no quarto e abriu as cortinas outrora cerradas. Deixou a luz entrar.
Colocou a roupa. Passou sem olhar no espelho. Ainda não tinha coragem de se olhar.
Deu uma ultima olhada no seu quarto. Seu refúgio. Sem hesitar, abriu a porta e saiu.
A moça a aguardava.
Sorrindo, pegou lhe a mão. E juntas, de mãos dadas, foram seguindo pela rua. Duas em uma só.
E, se misturaram na multidão.
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